Para desassossego daqueles que defendem uma reformulação da Federação brasileira mas sem menosprezo à autonomia dos entes federativos locais, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) tomada na sessão de julgamento desta última quarta-feira na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5540 pode criar uma nova hipótese de intervenção nos Estados, não prevista na Constituição de 1988.
Na prática, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a quem a Carta da República conferiu a competência para processar e julgar originariamente os governadores dos Estados e do Distrito Federal nos crimes comuns (art. 105, I, “a”, CF), poderá também, ainda que monocraticamente e sem limite de prazo, afastar do exercício do cargo um chefe de Poder democraticamente eleito, e sem qualquer controle prévio necessário por parte de uma instância política, tal como ocorre nos processos de intervenção federal que tenham por consequência um possível afastamento de autoridades locais (art. 36, §§ 1º e 2º, CF).
Essa nova competência – por assim dizer, interventora – pode resultar da mudança de entendimento do STF acerca da necessidade de autorização prévia da respectiva Assembleia Legislativa (ou Câmara Legislativa, no caso do Distrito Federal) para que o STJ exerça a missão que, afinal, o constituinte originário lhe concedera expressamente para processar e julgar os governadores estaduais e distrital nas infrações penais comuns. A partir de agora, essa autorização prévia não se faz mais necessária, em oposição ao antigo entendimento consagrado na jurisprudência da Corte.
A mudança de entendimento do STF mostra-se aceitável do ponto de vista jurídico: afinal, quando da atribuição da competência em apreço ao STJ, o constituinte originário não estabeleceu expressamente qualquer atrelamento ou condicionamento dessa Corte nacional em face do parlamento local, de tal modo que o exercício de sua competência poderia ser compreendido como pleno.
O que assusta, porém, são as consequências decorrentes da nova orientação.
A prevalecer sem quaisquer ressalvas o novo entendimento da Corte Suprema, o STJ poderá ter agora nas mãos não apenas a prerrogativa de livremente processar e julgar os governadores de Estado e do Distrito Federal – o que já parecia decorrer da própria Carta Federal. Mas passará a ter também, e aparentemente sem quaisquer restrições segundo se extrai da notícia do julgamento, o poder de afastar os governadores mediante a concessão de mera medida cautelar nesse sentido.
O exercício dessa competência excepcional – que, como se disse, funciona na prática como ato de intervenção, mas não está cercada dos cuidados que o constituinte dedicou a esta – pode levar a que o chefe do Poder Executivo estadual ou distrital democraticamente eleito venha a ser afastado do cargo por ato unipessoal do ministro relator de seu processo no STJ ou mesmo por prazo indeterminado.
Quanto ao risco de afastar o Governador por decisão monocrática do relator do processo no STJ, uma medida prudente a ser construída pelo STF – sim, “construída”, como quase tudo que a Corte faz em casos difíceis como este – é condicionar o afastamento a uma “reserva de plenário” (ou da respectiva Corte Especial, no caso do STJ). Seria o mínimo a fazer ante a ausência, nesta nova hipótese de interferência interfederativa, de um controle seja político, seja jurisdicional prévio e necessário, tal como previsto para a intervenção federal (art. 36, CF).
O princípio da colegialidade, aqui, serviria para evitar eventuais ímpetos do relator em tema de extrema delicadeza para o equilíbrio federativo e dos Poderes, além de prestigiar o elemento democrático da questão.
Quanto ao risco de o afastamento imposto pelo órgão colegiado do STJ se prolongar indefinidamente no tempo – o que, no contexto atual da Justiça brasileira, não é improvável -, afigura-se prudente estender, mais uma vez pelo processo de “construção” próprio das supremas cortes, alguns padrões prudenciais inspirados na própria vontade do constituinte de 1988.
O primeiro deles é no sentido de que todo processo de intervenção interfederativa ou intergovernamental, por ser excepcional, deve ser temporário. É o que ocorre, por exemplo, na intervenção federal, em que o interventor tem o dever constitucional de especificar o prazo previsto para a intervenção (art. 36, § 1º, CF).
Um segundo padrão prudencial, também ligado às razões de excepcionalidade e temporariedade do primeiro, tem a ver com o fato de que esse limite temporal precisa ser certo e, sempre que possível, não dependente do arbítrio do órgão interventor. Neste caso, a própria Constituição da República, como expressão mais evidente que é da vontade constituinte, estabeleceu para um caso semelhante ao dos governadores o limite de 180 (cento e oitenta) dias para a suspensão do chefe do Poder Executivo do exercício de suas atividades. Trata-se da hipótese de afastamento do Presidente da República tanto nos crimes de responsabilidade como nas infrações penais comuns, no tocante à qual a Carta estabelece que, “[s]e, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo” (art. 86, § 2º, CF).
Com essas duas cautelas, a nova interpretação do STF contribuirá para que a necessária reformulação do Estado federal brasileiro seja feita sem menosprezo ao status jurídico-político das instituições constitucionais dos entes federativos locais.
Trata-se, portanto, de um aperfeiçoamento não apenas necessário juridicamente, mas adequado do ponto de vista de uma política constitucional de reconstrução da Federação brasileira, a que se tem assistido nos anos mais recentes de atuação da Suprema Corte.
Publicado originalmente em 04/05/2017 em Jota