Ao se analisar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da autonomia dos estados-membros e dos poderes que em nome dessa autonomia tais entes estariam autorizados a exercer, é notável a quantidade de julgados em que se fez uso de um hipotético postulado constitucional que a própria Corte convencionou denominar “princípio da simetria”.
Sem explicitar a origem, a natureza ou mesmo o significado de tal “princípio”, aquele Tribunal da Federação aproveitou-se reiteradamente desse “fundamento” para tornar sem efeito uma série de leis e atos normativos editados principalmente pelos poderes públicos estaduais, sem falar em incontáveis atos concretos das mesmas autoridades igualmente nulificados por “desconformidade” com o referido postulado.
Ante a indefinição daquela Corte quanto à fixação de um sentido claro e uniforme para o “princípio da simetria”, uma parcela da doutrina constitucional, a pretexto de desvendar-lhe um significado supostamente oculto na jurisprudência, associa-o à ideia de que os estados, quando no exercício de suas competências autônomas, devem adotar tanto quanto possível os modelos normativos constitucionalmente estabelecidos para a União, ainda que esses modelos em princípio não lhes digam respeito por não lhes terem sido direta e expressamente endereçados pelo poder constituinte federal.
Assim, para citar alguns exemplos de aplicação desse entendimento, (a) em caso de ausência do governador do território do respectivo estado-membro por mais de 15 dias sem licença da Assembleia Legislativa, ou (b) na hipótese de emenda parlamentar contendo aumento de despesa em projeto de lei de iniciativa reservada do governador, ou ainda (c) na circunstância da instalação de comissão parlamentar de inquérito estadual para apuração de fato determinado, os estados-membros, “por força do princípio da simetria” e diante da ausência de regramento constitucional federal específico voltado a esses entes no que diz respeito a tais questões, deveriam conduzir-se nos mesmos moldes em que o constituinte federal dispusera para a União em situações consideradas semelhantes.
Isso quer dizer que não apenas os estados deveriam assim se conduzir na sua prática institucional cotidiana, como também suas normas constitucionais de organização relativas a tais temas deveriam assim se amoldar quando de sua elaboração pelo poder constituinte estadual, sob pena de inconstitucionalidade em face da Constituição da República, à qual as Cartas estaduais encontram-se subordinadas (art. 25, caput, CF, e art. 11, caput, ADCT).
Em face disso, e segundo a jurisprudência do STF baseada naquele postulado, tais entes federativos deveriam, pois, organizar-se e comportar-se de modo a, relativamente aos casos em questão, (a’) estipular a pena de perda de mandato do governador que se fizer ausente do território estadual por mais de 15 dias sem autorização do respectivo parlamento, tal como estabelecido constitucionalmente para o presidente da República (art. 83, CF), (b’) proibir a emenda parlamentar que eleva gastos em projetos de lei de iniciativa privativa do governador, assim como disposto constitucionalmente para o processo legislativo federal (art. 63, I, CF) e, por fim, (c’) garantir o direito de criação de comissões parlamentares de inquérito mediante o requerimento de um terço dos membros das Assembleias Legislativas, tal como definido constitucionalmente para as Casas do Congresso Nacional (art. 58, § 3º, CF).
O que as situações descritas em (a), (b) e (c) têm em comum, além da circunstância de todas terem sido extraídas de casos reais, é o fato de a Constituição Federal, não fosse por um pequeno conjunto de princípios constitucionais aos quais essas situações poderiam ser vagamente reportadas, não lhes ter oferecido qualquer regramento expresso, diretamente voltado aos estados-membros.[1]
Por outro lado, o que as soluções apresentadas em (a’), (b’) e (c’) guardam em comum, além da circunstância de todas traduzirem a jurisprudência do STF adotada naqueles mencionados casos, é o fato de estarem baseadas em uma regra constitucional previamente estabelecida para a União, mas não para os estados, no tocante a determinadas situações semelhantes.[2]
Tais circunstâncias revelam que, na hipótese de dúvida sobre se situações como aquelas relatadas receberam adequado tratamento por parte das instâncias estaduais de aplicação ou mesmo do poder constituinte estadual, a Carta Federal (i) tanto pode deixar de oferecer normas-regra especificamente voltadas para a resolução daqueles casos (produzindo-se, com isso, uma lacuna normativa) (ii) como pode limitar-se a oferecer normas-princípio apenas vagamente relacionadas aos mesmos casos (engendrando-se, assim, uma lacuna de indeterminação).
Diante desse cenário, o STF, quando defrontado com questões dessa natureza, dispõe de pelo menos duas posições possíveis. Nos termos da primeira, a Corte, mesmo reconhecendo que questões envolvendo limites à autonomia dos estados são questões eminentemente constitucionais, rende-se ao fato de que a Constituição Federal nem sempre oferece uma regra expressa e específica para cada uma delas, e aceita eventual solução adotada no âmbito estadual, seja esta qual for, invocando, ainda, em favor de tal postura, uma pretensa valorização das autonomias locais. Conforme uma segunda posição, o Tribunal, inclusive por reconhecer que questões envolvendo restrições à autonomia estadual são questões constitucionais que não podem ser deixadas sem resposta, esforça-se por construir uma decisão para cada uma delas, mesmo que para isso tenha que se valer da cláusula constitucional segundo a qual, no exercício de autonomia por parte dos estados, estes devem observar “os princípios desta Constituição” (arts. 25, caput, CF, e 11, ADCT).
Analisando-se uma série de precedentes do STF baseados no “princípio da simetria”, e a despeito da vagueza deste postulado, percebe-se que no fundo as decisões tomadas revelam um alinhamento da Corte no sentido da segunda postura acima apontada.
Com efeito, ao receber uma ação direta de inconstitucionalidade ou um recurso extraordinário oriundos, por exemplo, (a”) de um governador de estado questionando norma constitucional estadual que o impeça de fazer qualquer viagem para fora do estado, ainda que por um curto período de tempo, sem a prévia autorização da respectiva Assembleia Legislativa, ou advindos (b”) do Ministério Público impugnando a validade formal de lei estadual cujo projeto, decorrente de iniciativa reservada do Poder Executivo, fora aprovado com emenda parlamentar aumentando os gastos originariamente previstos, ou provenientes (c”) de um partido político de oposição com representação na Assembleia Legislativa discutindo a validade de regra regimental que submeta requerimento de um terço dos deputados estaduais para criação de CPI à deliberação da maioria em plenário, enfim, ao receber uma ação ou um recurso nesses sentidos, o STF, sob o argumento de valorizar a autonomia estadual e ante a ausência de normas-regra específicas para esses casos no bojo da Constituição Federal, poderia muito bem declarar a total liberdade das instâncias locais de aplicação para resolver tais questões como lhes aprouvesse.[3] No entanto, o que a Corte realmente tem feito é reconhecer que todas essas são questões constitucionais que, embora não contem com um regramento constitucional federal expresso ou específico, devem ser resolvidas à luz da Carta da República, ainda que para isso se tenha que invocar a aplicação de normas-princípio, ou seja, os mencionados “princípios desta Constituição” (arts. 25, caput, CF, e 11, ADCT).
Se toda essa leitura estiver correta, então não há como fugir da constatação de que o STF, nos casos em que costuma invocar o “princípio da simetria”, está essencialmente aceitando enfrentar uma série de questões federativas sem solução constitucional evidente. Federativas, porque envolvem a restrição da autonomia estadual, o que por si só já empresta índole constitucional a essas questões, na medida em que o regime de imposição de limites àquela autonomia constitui matéria sob reserva de Constituição (art. 18, CF). Por outro lado, dada a sua natureza constitucional, tais questões devem ser resolvidas nos quadrantes da Constituição Federal. Não obstante, e conforme já foi visto, o texto constitucional em muitos aspectos é lacunoso, pois não apresenta uma solução evidente para todos os casos a ele reportados, seja porque não lhes oferece uma norma-regra (lacuna jurídica), seja porque somente lhes oferece uma norma-princípio (lacuna de indeterminação). Em ambas as situações, se a Corte não quiser fugir ao seu dever de solucionar questões constitucionais envolvendo conflitos entre atores estaduais (Executivo x Legislativo, maioria x minoria, etc.), então deverá dar efetiva solução a tais questões, ou seja, deverá criar regras constitucionais que ainda não existem (alguns falarão em “revelar” regras constitucionais implícitas), mesmo que para isso tenha que derivá-las de princípios constitucionais indeterminados.
Para criar ou explicitar tais regras, o STF poderia valer-se de variados mecanismos e, assim, construir as respostas aos problemas em apreço (valendo-se, por exemplo, de recursos como tradição, direito comparado, doutrina, equidade). Mas também pode voltar-se ao próprio sistema jurídico dentro do qual haverá de resolver as tais questões e, nele, identificar uma solução já atribuída pelo legislador constituinte democrático a outras situações semelhantes. Aliás, parece que é justamente isso que a Corte realiza nos casos em que invoca a “simetria” com a finalidade de aplicar aos estados uma regra expressamente direcionada à União, valendo-se, assim, de um paradigma oferecido pelo próprio constituinte federal para, então, aplicá-lo a uma situação lacunosa semelhante àquela especificamente regulada no texto constitucional.
Dificilmente a esta altura o leitor não terá percebido a insinuação de que o STF, nos casos envolvendo o “princípio da simetria”, está na verdade aplicando uma forma de argumentação por analogia. Com efeito, uma análise acurada dos diversos precedentes judiciais pretensamente baseados na “simetria” acaba por demonstrar que o Tribunal não apenas faz uso (muito embora não o reconheça nem o faça de maneira regular) de uma forma de argumentação por analogia, mas também sugere que (se o reconhecesse e o fizesse de modo adequado) decidiria as questões submetidas a seu juízo de maneira muito mais racional e controlável do que tem feito quando se vale simplesmente daquele postulado.
Desse modo, verifica-se que, ao basear suas decisões no “princípio da simetria”, o STF parece “assumir” estar diante de um problema de lacuna, ao qual tenta responder, embora sem o reconhecer claramente, com elementos típicos do raciocínio por analogia. A propósito, relembre-se que a analogia não é um instrumento invocado apenas quando não se tem norma alguma (no caso de lacunas normativas, em que se carece de uma regra), mas também é um recurso utilizado quando a norma disponível é um princípio indeterminado, carecedor de conteúdo (e o que falta, portanto, é um melhor desenvolvimento do seu significado).
Diante de tal constatação, e a partir da experiência do STF, seria útil construir um modelo decisório apto a auxiliar a resolução de questões federativas lacunosas que estivesse baseado no argumento analógico. Tal providência teria a virtude de oferecer uma “nova” metodologia para solucionar tais questões (não que a “simetria” pressuponha alguma…) e, com isso, poderia diminuir os ruídos e incertezas provocados pela utilização de um “princípio” que de há muito vem incomodando muita gente até mesmo dentro do próprio Tribunal.
A construção de um modelo decisório para as questões federativas sem solução constitucional evidente que tenha por base o argumento analógico exige que se definam previamente as etapas do raciocínio subjacente a essa forma de argumentação. De antemão, é possível reconhecer que o argumento por analogia não respeita a uma estrutura única, sendo possível identificar, entre os diversos autores que abordam o assunto, uma variação dos estágios considerados relevantes para a construção dessa modalidade de argumento.
Tomando isso por base, não interessa tanto e necessariamente adotar a proposta de um autor específico no tocante à estrutura do argumento analógico, mas estabelecer um modelo ou padrão decisório em que, a um só tempo, suas respectivas etapas (a) estejam de alguma forma amparadas pela doutrina, (b) não contenham contradições intrínsecas ou entre si e (c) sejam adequadas ao tipo de problema ao qual se pretende aplicá-las (no caso, as questões federativas sem solução constitucional evidente). Um quarto quesito pode ser ainda aventado, e consiste justamente na (d) adequação de tal modelo — com cada uma de suas etapas — à jurisprudência constitucional acerca do assunto. Em relação a esse último tópico, não se trata de ajustar a teoria à prática jurisprudencial, para, com isso, atribuir legitimidade a esta. O que se pretende é apenas avaliar se aquela jurisprudência conta com algum elemento de coerência, seja ele qual for (embora a “aposta” aqui feita seja em favor do raciocínio por analogia).
Diante disso, propõe-se um modelo — baseado numa forma de argumentação por analogia — que seja composto pela seguinte estrutura: (i) identificação de uma questão federativa sem solução constitucional evidente; (ii) identificação de um parâmetro constitucional aplicável a uma hipótese semelhante; (iii) reconhecimento da identidade de razão entre a situação não regulada e a hipótese regulada; (iv) identificação de um princípio constitucional comum às duas situações; (v) reconhecimento da inexistência de uma “vontade” constitucional contrária; (vi) construção da máxima de decisão para o caso.[4]
Além de poder funcionar como modelo decisório para o julgador que tiver diante de si uma questão federativa sem solução constitucional evidente, pretende-se ainda que tal estrutura sirva de modelo de análise dos precedentes do STF baseados no “princípio da simetria”, modelo a partir do qual será possível, em relação a esses julgados, identificar a eventual presença dos elementos (e das etapas) do argumento por analogia.
Se os precedentes analisados puderem ser reconduzidos a esse modelo, será possível concluir que as decisões baseadas no “princípio da simetria” ocultam uma forma de argumento por analogia, que, uma vez assumida pelo STF, poderia emprestar maior legitimidade racional àquelas decisões e, assim, permitir que as mesmas sejam passíveis de um controle social mais efetivo.
Tenha-se em mente, por fim, que a proposta ora esboçada procura tomar a sério o alerta feito por Larenz, no sentido de que “[o] desenvolvimento judicial do Direito precisa de uma fundamentação levada a cabo metodicamente se se quiser que o seu resultado haja de justificar-se como ‘Direito’, no sentido da ordem jurídica vigente. Precisa de uma justificação porque sem ela os tribunais só usurpariam de facto um poder que não lhes compete”.[5] Estima-se que, no caso do uso do “princípio da simetria”, tal recomendação não venha sendo cumprida de forma adequada, daí a proposta do presente modelo decisório fundado em bases argumentativas.
É preciso alertar, por fim, que o modelo proposto não gera por si só uma decisão necessariamente justa ou correta, mas aumenta consideravelmente as chances para que o julgador possa chegar a esse resultado, sem que tenha de apelar para o enigmático “princípio da simetria”.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Clique aqui para acessar o portal do OJC.
[1] Nos casos em apreço, os respectivos relatores invocaram os seguintes princípios constitucionais: em (a), o princípio da responsabilidade dos governantes; em (b), o da separação de poderes; e em (c), o da proteção das minorias parlamentares.
[2] Os casos descritos foram extraídos dos seguintes precedentes, acima citados nesta ordem: ADI 3647, ADI 2079 e ADI 3619. Por outro lado, todos os dispositivos constitucionais invocados nas suas razões de decidir, quais sejam, os artigos 83, 63, I, e 58, § 3º, têm como objeto a disciplina de instituições e procedimentos relacionados aos Poderes da União.
[3] Mas, com isso, o Tribunal também poderia estar sepultando de uma vez por todas um legítimo interesse do Governador, do Ministério Público e do partido político.
[4] Esclareça-se que o modelo acima esboçado aproxima-se da analogia legis, mas não exclui a analogia iuris. As etapas de construção do argumento analógico e a sua respectiva sequência, tal como apresentadas no texto, são resultado da conjugação dos pontos de vista de diferentes autores, entre os quais Manuel Salguero (Argumentación jurídica por analogía, Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 84), María José Falcón y Tella (El argumento analógico en nel derecho, Madrid: Civitas, 1991) e Riccardo Guastini (Le fonti del diritto e l’interpretazione, Milano: Giuffrè, 1993, p. 429-30). No entanto, o modo como esses elementos foram dispostos aqui não coincide necessariamente in totum com a forma como apareceram na obra desses autores.
[5] Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 3.ed., tradução de José Lamego, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 524.
Publicado originalmente em 24/11/2012 em Consultor Jurídico